“O sentimento de culpa é o sofrimento obtido após a reavaliação de um comportamento passado tido como reprovável por si mesmo. A base deste sentimento, do ponto de vista psicanalítico, é a frustração causada pela distância entre o que não fomos e a imagem criada pelo superego daquilo que achamos que deveríamos ter sido. Há também outra definição para sentimento de culpa, quando se viola a consciência moral (ou seja, quando pecamos e erramos), surge o sentimento de culpa.”
“A palavra remorso tem origem latina, vem de remorsus, particípio passado de remordere, que significa tornar a morder. Liga-se, portanto, a dilacerar, atacar, satirizar, ferir, torturar, atormentar. A própria etimologia da palavra já nos dá a ideia de como esse sentimento é doloroso e da angústia e até mesmo da vergonha que o acompanha. Isso vem da consciência de termos agido mal. Geralmente vem acompanhado de arrependimento, culpa, lamentação.
O remorso é um sentimento sobre os acontecimentos e atitudes do passado. É a sensação do que não era para ser dito, do que não era para ser feito.”
O remorso é um sentimento sobre os acontecimentos e atitudes do passado. É a sensação do que não era para ser dito, do que não era para ser feito.”
Depois de ter esclarecido estes dois conceitos, poderei relacionar com o livro do Frei Luís de Sousa.
O Frei Luís de Sousa remota, para além dos clássicos franceses e italianos, as fortes gregas da tragédia. Enquanto naqueles se evidencia o conflito das personagens e dos sentimentos, particularmente da ambição e do amor, nestes sobressai quase sempre a intervenção de uma fatalidade transcendente aos homens indefesos. É uma fatalidade deste tipo que no Frei Luís de Sousa parece cair sobre os protagonistas. O Romeiro serve-se de portador: o aparecimento dele vem anular toda a sua vida que se erguera sobre o pressuposto á morte de D. João de Portugal, anular o segundo casamento da sua suposta viúva, e riscar da lista dos legalmente nascidos, a filha, que desse casamento nascera o passado que se julgara morto. E ninguém parece culpado, porque D. Madalena foi sempre fiel (salvo num sentimento intimamente reprimido e imponderado: o de se ter apaixonado por Manuel de Sousa, e sem que ele próprio o soubesse, quando era ainda casada com D. João), e seu marido um português exemplar. Á fatalidade nada resiste, nem mesmo os direitos da vida, que Maria nas cenas finais proclama:
“ Que Deus é este que esta nesse altar e que quer roubar o pai e a mãe a sua filha? (…) o outro (…) que se fique na cova ou que ressuscite agora para me matar?”
Mas, não impedia o seu protesto, Maria morre “de vergonha” como ela diz, consumindo a acção da fatalidade. A verdadeira acção da peça é a aproximação desta fatalidade, a presença cada vez mais palpável de um espectro, através dos temores de D. Madalena, das insinuações de Telmo Pais, dos sonhos de Maria. E ate o acto forte e exemplar de Manuel, incendiando patrioticamente a própria casa, serve para atrair a uma cilada do destino, obrigando a família a transferir-se para a casa do suposto morto.
Ao lado de Telmo Pais, que alias lhe serve por vezes de voz á sua consciência moral, resume a verdade a figura de D. Madalena, no seu esforço para recalcar um sentimento e esconde de si mesma a duvida que a inibe de gozar calmamente uma feliz vida. Mas que remorso e que duvida? Como nas tragédias gregas, o destino é desencadeado por uma única infracção dos costumes: aquela revolta afectiva sem consequências que D. Madalena, ainda em vida do primeiro marido, teve por Manuel de Sousa e que, subjectivamente, nunca lhe permite a certeza de tudo. Uma critica interior, talvez, ou pelo duplo complexo de culpa, inconsciente, de Telmo e D. Madalena, quer a ansiedade, e medo pegados á filha do segundo casamento. O senso do destino explicaria uma ânsia de expiar a culpa. Alias, como veremos, o sentimento de culpa surge persistentemente na obra de Garrett.
Há nesta obra duas tendências; por um lado uma “reclamação” da liberdade de amar, de corrigir, os erros conjugais evidentes, ao que se associam, pela boca da figura mais sonhadora, Maria, a exigência de “emendar o mundo”, por outro lado, acompanhando de remorsos, o sentimento religioso de um acontecimento superior, que não se encontra mais soluções para a morte injusta de Maria.
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