Tem de ficar reservado à investigação posterior verificar se, dentro da tragédia, ou do drama de desenlace, haverá tipos de estrutura mais nitidamente marcados. Nós limitamo-nos a apresentar um exemplo prático para a compreensão da estrutura interior da tragédia. Assim se mostrará a maneira de trabalhar deste método, que tem em vista as últimas profundidades de uma obra. Simultaneamente tornar-se-á nítido o que se ganha assim para o esclarecimento de toda a obra. Escolhemos como exemplo, a obra que, segundo os críticos contemporâneos, é a obra-prima do teatro português, em si tão escasso: o Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett. Na Alemanha a obra foi traduzida por W. v. Lukner (1847), Georg Winkler (1899) e outros, e foi também representada ocasionalmente. Por pouco não encontrou o caminho do teatro de ópera: F. Mendelssohn-Bartholdy pediu ao Conde Schack um libreto de ópera que se chamaria Manuel de Sousa.
O assunto em si é histórico: Manuel de Sousa (1555-1632) tinha desposado a viúva de um nobre caído na funesta batalha de Alcácer Quibir; o regresso do que havia sido dado por morto destruiu a família e fez entrar os esposos em conventos. Sob o nome de Frei Luís de Sousa chegou Manuel mais tarde a ser um escritor célebre. (Ademais Manuel fora na sua juventude cativo de mouros que o levaram para Argel; ali se encontrara com Cervantes que em Persiles y Sigismunda faz contar ao seu companheiro de desgraça uma romanesca história da sua vida.)
Se a categoria do drama é quase irrefutada, a sua interpretação tem dado lugar a muitas discussões. Farinelli interpretou a tragédia como tragédia de carácter (citado por Joaquim de Araújo, o Frei Luís de Sousa, pág.65). António Arroyo (A figura dramática de Maria de Noronha, Sep. de A Águia, 1922) focava Maria como verdadeiro centro; ela seria, por um lado, símbolo da idade de ouro moribunda; por outro, seria uma duplicação de Manuel de Sousa e, como tal, encarnação do seu espírito poético. Outros consideravam o Cristianismo a ideia verdadeiramente construtiva da obra; da retirada das pessoas principais para o claustro faziam um apelo ao leitor para que pensasse na salvação da sua alma. A. J. da Costa Pimpão (Biblos, XVI) colocou de novo Maria no centro e interpretou também a génese do drama partindo da ansiedade do poeta pela sua própria filha ilegítima, o que, aliás, já tinham suspeitado Th. Braga e Le Gentil. Andrée Crabbé Rocha (O Teatro de Garrett, 1944), que conseguiu projetar plena luz sobre a génese e o problema das fontes, nomeou «quatro pontos cardeais» que, simultaneamente, seriam traços essenciais do português (pág.166): «o erotismo atenuado pelo medo do inferno, as forças transcendentes, fatais e conjugadas da igreja, a honra e o brio do português velho, e o idealismo sentimental de Maria.» A estas «dominantes» teria Garrett dado «corpo e seiva». Aqui, a autora força a um salto, pois não explica como aconteceu este «dar corpo e seiva». Não seria talvez também tão simples provar como se pode construir uma obra com estes quatro impulsos ideais.
Antecipando: Se olharmos da obra para a sua génese, não acreditamos nos quatro impulsos ideais, nem, aliás, em qualquer dos outros enunciados, tais como idade de ouro, cristianismo, filha ilegítima. E, olhando da obra para diante, não cremos que a sua importância e influência residam nas quatro dominantes (embora, sem contestação, elas pertençam ao fundo ideológico da obra). A nossa primeira resposta é, para ambos os lados: a obra foi criada – e atua – como tragédia.
O alto apreço em que é tida, precisamente no estrangeiro, apreço que se reflete nos esforços de vários investigadores estrangeiros em torno deste drama, não se deve, com certeza, ao seu carácter informativo, i. é, documental da maneira de ser portuguesa, mas sim à sua categoria artística. E isto quer dizer: ao seu carácter de tragédia. Que o incentivo decisivo foi a intenção de escrever uma autêntica tragédia, isto poderia provar-se suficientemente com as palavras do autor, em que neste caso acreditamos plenamente.
Delas depreendemos ainda mais: que ele queria escrever uma tragédia com a simplicidade e concentração antigas. Na sua «fonte» descobriu ele um argumento que continha «toda a simplicidade de uma fábula trágica antiga».
Ao procurar entender a estrutura especial de tragédia desta obra (toda a parte filológica foi definitivamente esclarecida por Andrée Crabbé Rocha), partimos da fábula. Pode reproduzir-se aproximadamente assim: Uma mulher, a quem foi anunciada a morte do marido, longe da pátria, casa com um outro, que, já antes, lhe não era indiferente. Deste casamento nasce uma filha. Anos volvidos regressa o primeiro marido tido por morto. O seu regresso destrói toda a família.
Fábula na verdade simples, na qual, aliás, nos impressiona imediatamente que as pessoas não podem desenvolver uma atividade palpável: não é, por certo, uma fábula trágica no sentido da estética idealista. Aproximemo-nos dela sem tais preconceitos, e então temos a esperar da essência do trágico que a situação da família nos seja exposta, no momento do regresso, como absolutamente irremediável. O mundo de Garrett é com efeito de tal feição que o regresso do primeiro marido causa a desonra da mulher e da filha e lhes tira assim toda a base da existência. (Outras elaborações do motivo do marido que regressa mostram que o mundo poético pode também ser organizado diversamente. Não faltam comédias sobre este motivo. Em Garrett é sobretudo a religiosidade que contribui para o rigor do seu mundo e que, já por isso, resulta ser um meio e não um fim.) Além disso, compreende-se logo que Garrett não marcou para o seu drama a mesma sequência de tempo que está incluída na fábula, mas procedeu, antes, a uma forte concentração. Escolheu a forma do drama analítico, em que os acontecimentos no palco nos apresentam apenas a última parte de um extenso acontecer, comprimida num breve espaço de tempo.
Porém o tempo, neste drama, tem ainda peculiaridades especiais. Como subdivisões não há nele só horas, dias e anos, mas datas e espaços de tempo estranhamente carregados. Tais datas suscitam um acontecimento fatal, indicam uma potência escura e a sua atuação quase rítmica. Sete anos se passam entre a morte do primeiro e o casamento com o segundo marido (as «fontes» falam de 17 a 18 anos), duas vezes sete anos decorreram desde então. A sexta-feira é um dia especial para Madalena (II, 5); em II, 10 ouvimos que o seu casamento, a fatídica batalha e o conhecimento com Manuel caem no mesmo dia do ano; é neste dia também que o primeiro marido regressa. Também para o Romeiro o dia do regresso é, assim, uma data especial (II, 14), etc. As figuras evidenciam um vivo sentimento desta fatalidade de datas e espaços de tempo, sentem medo da «hora fatal» (III, 7), do «dia fatal» (II, 10 e mais vezes). Esta estruturação do tempo é obra de Garrett, e, precisamente porque o é, parece lícito admitir já aqui que ele é de força expressiva quanto à essência do drama, à sua estrutura de tragédia.
Concentração é a primeira característica da estruturação do tempo; caracteriza também a estruturação do espaço. O primeiro ato passa-se no palácio de Manuel, o segundo e o terceiro no de D. João de Portugal. A mutação de lugar é forçosamente motivada, mais ainda: o primeiro cenário desaparece, deixa de existir – Manuel deita fogo ao seu palácio (traço histórico); o cenário do segundo e terceiro atos representa um mundo absolutamente fechado em si próprio. Porém, como o tempo, também o espaço é de género especial. Não que ele tome o papel principal: não devemos ver nele, por exemplo, o que era um solar à volta de 1600 e como lá se vivia. O local da ação é formado por categorias semelhantes às do tempo, quer dizer, a partir do acontecimento. O palácio pertence ao marido que regressa, insufla vida ao passado. Neste mundo dramático, as recordações transformam-se logo em pressentimentos. O espaço anuncia a desgraça que se aproxima, tem uma ação opressiva, fatal, ominosa. Pois um «omen» é a anunciação sensível de uma fatalidade iminente. Há no espaço dois sinais especialmente pressagos e ominosos. Quando arde o retrato de D. Manuel, isto aparece-nos, no mundo do drama, como indício certo de desgraça e assim é sentido pelas figuras. Atua também como «omen» o segundo retrato, o de D. João de Portugal. Madalena e também Maria param diante dele como que fascinadas. No fim do segundo ato torna-se meio de reconhecimento.
O espaço é formado pelo acontecimento. Não temos diante de nós um drama de espaço, nem tão-pouco um drama de personagem. Nas personagens mostra-se imediatamente a mesma concentração: são em número reduzido. Estão relacionadas umas com as outras de modo surpreendente e formam um todo fechado, ou seja uma família. Compõe-se de pai, mãe, filha, e criado que é parte integrante da família. A única figura «técnica» de importância é ainda irmão de Manuel. Pode-se quase dizer: a família é uma personagem, é a personagem do drama.
Se, partindo de uma determinada conceção do trágico, se exige que uma figura trágica tenha de ser sempre uma figura ativa, que se empenhe na defesa de uma ideia, neste exemplo se revela a estreiteza de tal conceção. Pois o nosso ponto de partida, a que nos conservamos fiéis, é a de que o Frei Luís de Sousa é uma autêntica tragédia. Nenhum membro desta família (e esta, como todo, naturalmente também não) é um herói ativo, nenhum pretende defender ideias (a aparente exceção, o «desafio» lançado por Manuel aos governadores ao deitar fogo ao palácio, será ainda debatido por nós). Podemos, decerto, dizer que esta família se que conservar como família, que estes seres humanos se pertencem e querem pertencer uns aos outros. A família está construída como família completa, viva. É digna de admiração a arte como o poeta sabe individualizar as relações entre os esposos, as relações da filha com o pai e a mãe, e as do criado com os três, - como ele sabe tornar plástica a família.
Mas as figuras não são só construídas como partes da família; também elas, pela criação do poeta, estão nitidamente orientadas para o acontecimento. Madalena vive com o seu desassossego, o seu pavor, os seus pressentimentos, desde a primeira palavra, para o acontecimento que há de vir (pelo que, simultaneamente, lhe é tirado tudo o que de acaso pudesse ter). Ainda mais, ela é construída pelo sentimento de ter cometido um «crime», por ter amado Manuel ainda em vida do primeiro marido. O «crime» pertence pois inteiramente à trama do acontecimento. (Ao mesmo tempo recai, assim, a sombra duma mácula sobre Maria como filha do pecado.) Como peculiaridade, Maria revela propensão para a doença, e esse estado precário de saúde de novo lhe dá predisposição para a morte final. Telmo faz parte da família; visto, porém, morfologicamente, ele é, ao mesmo tempo, a encarnação do passado que, ameaçador, penetra no presente e pressagia, ominoso, um futuro fatal. Telmo e Maria estão ligados pela fé no regresso de D. Sebastião. Este motivo não se limita a criar a atmosfera histórica, não comporta apenas patriotismo. Se estivesse na obra só com tal fim, seria um motivo correspondente mais ao género «play». Na realidade é um motivo de ação. Da mesma maneira que no Rei Édipo, logo no principio, a anterior libertação de uma catástrofe mediante a resolução do enigma por Édipo espelha o acontecimento futuro.
Finalmente, Manuel é quem menos parece estar construído em ordem ao acontecimento, sobretudo no princípio. Nele vão embater sem efeito os pressentimentos e receios de Madalena, sobre ele quase não atuam os indícios de desastres. Em compensação, é ativo, tem um objetivo em vista, e isto numa direção que não pertence, de forma alguma, ao acontecimento. O incêndio da própria casa quer ser um desafio aos governadores. Porém isto não prossegue, nem com uma só palavra: fica sendo um «motivo cego». A. Crabbé Rocha quis ver uma ligação íntima com o que vai desenrolar-se: «um gesto destes… prepara a digna e estoica renúncia aos seus afetos, depois da renúncia aos seus bens». Nós confessamos que nem no final conseguimos ver uma estoica renúncia, nem conseguimos compreender o incêndio como renúncia. Parece-nos exprimir, pelo contrário, atividade, resistência, e quase que sentimos uma quebra para com a passividade da atitude final. Mais adiante veremos que o «motivo cego», sem dúvida perturbador, não foi usado, somente, devido aos seus efeitos dramáticos e teatrais, embora estes estejam projetados em primeiro plano.
A despeito de tudo, também Manuel está ordenado ao acontecimento, logo desde o princípio. Os pressentimentos da mulher, na verdade, são para ele «quimeras de criança» (I, 11), mas, pouco depois, diz: «Meu pai morreu desastrosamente caindo sobre a sua própria espada. Quem sabe se eu morrerei nas chamas ateadas por minhas mãos?» Assim, subordina-se como figura a um mundo em que impera o «factum», e mais ainda: prova pertencer a uma família especialmente carregada, pois os seus membros atraem a morte sobre si próprios. E de facto: o destino pega-lhe na palavra. No ponto em que se mostrava ativo e parecia realizar livres resoluções (sacrifício da própria casa e mudança para o palácio de D. João), ele só ajudava o curso da fatalidade, suspensa sobre ele e a família.
Assim espaço e figuras mostram-se absolutamente formados pelo acontecimento e pertencentes a um mundo que corre para a ruína iminente. Um casamento pecaminoso (o «crime» de Madalena) e com ele o estigma de um nascimento maculado, uma família ameaçada pelo destino (os Sousas), mudança para um lugar ominoso, aparecimento de presságios significativos, fatalidade das datas, o marido que volta, a renúncia ao mundo – são estes os motivos pelos quais o acontecimento se liga ao final necessário e que uma análise da construção poderia mostrar ainda mais nitidamente. (O momento retardador no terceiro ato (5,12) já foi por nós discutido. Na sua intencionalidade atua como algo de perturbador como, incidentalmente, Garrett, como técnico e prático do teatro, colide às vezes com o trágico; comparar, por exemplo, com a «ironia trágica» em III, 6 e outros sítios. Rodrigues Lapa aponta estes casos nas anotações à sua edição do texto.)
Trata-se de um decurso necessário, que conduz ao extermínio. Sobre isto o poeta não deixa dúvidas: não morre só Maria, mas também a renúncia ao mundo por parte dos pais é extermínio; «para nós já não há senão estas mortalhas» (III, 9); «aqui não morre ninguém sem mim» (III, 11). E de novo nos é lícito apresentar a interpretação de Garrett: «a catástrofe é um duplo suicídio… morreram para o mundo». É um extermínio completo. Desaparece uma família inteira. Mais uma vez é significativa uma alteração das fontes. Com efeito, estas falam de filhos do primeiro casamento de Madalena. Se Garrett tivesse conservado isto, o extermínio não seria completo, o mundo não seria fechado.
É um decurso necessário e um extermínio necessário. Não há casos isolados, e até ações que parecem obedecer à livre resolução servem para o decurso do acontecimento. Por detrás deste torna-se sensível um poder unitário que tudo dirige. Anunciou-se e mostrou-se por meio de pressentimentos, visões (Maria) e «omina»: como destino, como «fatum».
Madalena traz em si o sentimento de ter cometido um crime, o seu segundo casamento afigura-se-lhe ter sido um delito. Assim surge a pergunta se o destino não encarnará a qualidade de uma ordem moral no mundo e se o extermínio não adquire, assim, o aspeto de um extermínio eticamente necessário. A pergunta justifica-se, mas é refutada pela própria obra. Até no caso de reconhecermos plenamente uma culpa em Madalena, o facto de também os outros, os inocentes, terem sido arrastados ao extermínio, seria inquietante, pavoroso, assustador. Mas a culpa nem sequer existe, objetivamente, para Madalena. (Objetivamente: dentro do mundo do drama.) A palavra «crime» é um exagero compreensível do ponto de vista da sensibilidade de Madalena, mas não a designação válida para o facto em si. A realidade não chega para nos fazer aceitar sequer o extermínio de Madalena para restabelecimento de um equilíbrio. Além disso, todo o mundo deste drama não é estruturado moralmente, mas sim fatalisticamente. De novo se prova como é estreita de mais perante esta tragédia real aquela conceção idealista do trágico, que procura a culpa pessoal e, como fim da tragédia, exige a harmonia da ordem mundial. Quem quisesse interpretar assim o Frei Luís de Sousa, mostrar-se-ia demasiado mole e fraco diante da dureza e grandeza deste trágico: uma família que deve existir, plenamente justificada e cheia de sentido, como valor, é destruída absurdamente e, ao mesmo tempo, com pleno sentido.
Nesta altura se deveria pôr a antiquíssima questão do «prazer pelos assuntos trágicos», o problema do sentido de tais obras literárias no conjunto da cultura. Não a estudaremos aqui, pois com ela entraríamos no terreno da Estética e da Filosofia da Cultura. Ficamo-nos pela obra, porque há algo ainda a acrescentar. –
Ainda não está bem determinada a essência trágica do drama. Sentimos nele uma grandeza especial. Resulta, em parte, do facto de não se tratar duma família qualquer, mas da dos Sousas e Vilhenas, como nos é revelado várias vezes e com certa insistência. E contudo são pequenos os efeitos que disto provêm, porque a própria obra nos impede de olhar para além da família tão limitada num mundo mais vasto e determinar nele a categoria dela. O Frei Luís de Sousa tem pouco do drama histórico, - ou não seria a tragédia pura que é. A grandeza entra nela sobretudo pela altura do adversário. Pode surpreender que nunca seja evocado por um nome próprio: através de todo o drama evita-se o termo «destino». Mas em troca topamos palavras e expressões tais como «fatal, funesto, agouro, prognósticos, pressentimentos de desgraça, desgraça a cair, desgraça eminente», etc. Só aceitando-as com todo o seu significado nos mantemos sensíveis perante a grandeza do adversário e, assim, da tragédia. Não se trata de uma catástrofe qualquer, mas sim de uma catástrofe planeada de há muito e realizada com ímpeto por um poder superior fatal.
Mas a impressão de grandeza resulta ainda de um outro facto. Só agora se revela com clareza todo o significado do motivo «sebastianista». Logo na segunda cena fundem-se os dois motivos de regresso quando Madalena diz a Telmo: «mas as tuas palavras misteriosas, as tuas alusões frequentes a esse desgraçado rei D. Sebastião, que o seu mais desgraçado povo ainda não quis acreditar que morresse, por quem ainda espera em sua leal incredulidade, - esses contínuos agouros e que andas sempre de uma desgraça que está iminente sobre a nossa família…» Na mesma frase ligam-se os dois motivos!
No Sebastianismo, como ele é representado no Frei Luís de Sousa por Telmo e Maria («o nosso santo rei», diz Maria em I, 3), reside não somente a crença em que o rei ao voltar (o «Encoberto») conduzirá a uma época de brilho para Portugal. Infiltraram-se nele conceções messiânicas mais antigas e relativas ao fim próximo do mundo. Com Sebastião começará uma nova época mundial do direito e da grandeza, a qual será a última no plano divino da salvação dos homens.
O regresso que se realiza no Frei Luís de Sousa é, visto de lá – e temos de o ver assim, segundo a vontade da obra -, um anti-regresso. Não leva à redenção, mas à catástrofe, e não é uma «graça», mas sim uma «des-graça». O nimbo messiânico à volta do mito sebástico paira à volta do regresso destruidor de D. João de Portugal. O próprio drama obriga-nos à representação concreta de tais relações. Em III, 11 chama Maria a D. João «homem do outro mundo», «anjo terrível», falando das suas visões. E quando, na cena seguinte, o vê e ouve, ela grita: «É aquela voz, é ele, é ele!» Parece-nos ser uma fraqueza artística a maneira como Garrett se aproveita, aqui, das visões de Maria. Provém mais uma vez da vontade de ser muito claro. É como se Garrett tivesse duvidado dos efeitos adequados do motivo «sebastianista» por si só. O facto de os intérpretes não terem reconhecido toda a importância do motivo parece justificar o processo do autor. Todavia, pode-se confiar em que o fundo numinoso desse motivo tem atuado plenamente nos espetadores do drama, mesmo que não tivessem tido consciência disso. Deve-se, em todo o caso, àquele motivo uma boa parte da grandeza própria do Frei Luís de Sousa.
Todos aqueles que não reconhecem o extermínio da família como o verdadeiro fim da ação dramática ou que querem abrandar o ímpeto da destruição por uma culpa pessoal, diminuem com isto a grandeza da tragédia. Contudo, e isto é o último resultado acessível à interpretação, foi o próprio Garrett que diminuiu um pouco, só um pouco, na verdade.
Não falámos ainda do título, que, afinal, pertence também à obra. Surpreende-nos que Garrett não tenha posto no título um motivo central, ou a família, ou um «omen», ou qualquer outra indicação acerca do destino, mas sim escolhesse apenas uma figura da família. Mas Frei Luís de Sousa não é uma figura da família, não pertence mesmo, de forma alguma, à peça. Não surge em parte alguma, não existe. Ainda não existe. A obra conta com a cultura do espetador, que sabe que este Manuel virá a ser, um dia, o grande Frei Luís. Manuel soçobra, e contudo, não soçobra. Sobre a tragédia acumula-se alguma coisa diferente. E então, talvez se possa compreender também por que motivo o poeta, no fim do primeiro ato, vai um pouco além da estrutura da ação e da tragédia: quando Garrett constrói a figura com traços que sobrepujam a ação, prepara-lhe uma continuação da vida. Pode ser exterminado só parcialmente, como membro da família, mas não na totalidade, como figura de valor autónomo. Esta figura mais completa viverá para além do extermínio parcial e há de até desenvolver-se: o sofrimento faz dele um escritor. Assim se sobrepõe à estrutura da tragédia – por cero só muito ligeiramente – uma outra: o mito do artista. Evidentemente, na aceção romântica, à pergunta: o que é o poeta?, responde um mito romântico: é quem caminhou através do mais profundo sofrimento na terra, quem foi marcado pelo destino.
Esta estrutura só é ligeiramente indicada. O mundo como tal é drama de ação, tragédia, em que o acontecimento é dirigido pelo destino. Se procurássemos um nome apropriado, só poderia ser: a obra é uma tragédia, e tragédia de destino.
Se, realmente, olharmos um pouco para além da obra, bastam alguns conhecimentos da história da literatura para encontrarmos no Frei Luís de Sousa uma estrutura típica, designada como drama de destino (Schicksalsdrama, tragédie fatalle). Como precursores é costume nomear Lillo, Karl Phillipp Moritz, Tieck, Schiller (Braut von Messina). A tragédia de destino (romântica) recebeu o seu cunho especial na obra 24 de Fevereiro de Zacarias Werner. Gorner provou que para a tragédia de destino são típicos cinco grupos de motivos: incesto, profecia de uma desgraça, maldição sobre uma família, assassínio de parentes, regresso. Todos os motivos se agrupam em torno de uma família e ligam-se numa cadeia ininterrupta ao serviço de um destino imperante, que conduz à destruição dessa família. Tempo e espaço estão carregados de fatalidade até rebentarem, isto é, são ominosos: 24 de Fevereiro é o dia anunciado no título, a data fatal, e sete anos o espaço de tempo fatal. Facas, punhais, quadros são os requisitos típicos, fatais, da tragédia de destino.
Quando Garrett ironizava os dramas do seu tempo: «uma dança macabra de assassínios, de adultérios e de incestos, tripudiada ao som das blasfémias e das maldições» - mostra como conhecia bem o drama de destino. Porém, com isto não pode iludir-nos: a sua obra aproxima-se deste tipo. Uma comparação, que não podemos apresentar aqui, poderia mostrar efetivamente o enobrecimento e subtilização íntima alcançados pelo dramaturgo português. Garrett conhecia a tragédia alemã de destino. Conhecia Die Braut von Messina de Schiller, conhecia o 24 de Fevereiro, de Werner, apresentado por Mme de Stael como o maior dramaturgo alemão depois de Schiller, cuja obra ela trata exaustivamente. Desde 1823, havia uma tradução francesa: em 1828, o «Globe», com o seu predomínio, chamou a atenção para o autor num artigo importante. Desde 1827 – e isto deve ter sido mais importante para Garrett do que o seu conhecimento da literatura alemã – torna-se poderosa a influência da tragédia de destino sobre o drama francês (Ducange e Dinaux, V. Hugo, Delavigne, A. Dumas, etc.). Mas liga-se aqui com o drama histórico: a estrutura da tragédia e a do «play» sobrepõem-se, em graus diferentes, uma à outra. Neste ponto, mostra-se de novo a grandeza de Garrett: deu o colorido histórico só até ao ponto conveniente à ação trágica, mas, no todo, criou uma obra que é puro drama de ação, pura tragédia, e que pode ser designada, talvez, como cume de toda aquela dramaturgia pertencente à vasta montanha do drama do destino romântico.
Parece-nos ter mostrado que a compreensão do genérico, e só ela, é capaz de verificar o que uma obra é no fundo. E, ao mesmo tempo, vimos que, precisamente com isto, a história da literatura bem como a valorização das obras adquirem pontos de partida da maior fecundidade para o seu trabalho.Wolfgang Kayser, Análise e Interpretação da Obra Literária, vol. II
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