Desde cedo que ouvimos falar em como as aparências iludem e de como não devemos julgar as pessoas pelo que aparentam ser exteriormente, mas sobretudo pelo que são interiormente, pelo seu potencial, pelo seu conhecimento, pelas suas competências, pelos seus princípios e valores, pela sua formação cívica, pelas suas acções. Mas quantos de nós é que julga assim os outros no seu dia-a-dia? Atrevo-me a dizer, muito poucos, ou até mesmo nenhuns o fazem sempre e com convicção.
Sempre que vimos alguém na rua, que tenha um aspecto exterior “fora do normal” temos logo a tendência para lhe apontar o dedo (e não é que muitas vezes até fazemos este gesto mesmo?), rir e fazer comentários a seu respeito – “Meu Deus, o que é que deu naquele?”, “Deve ter algum problema!”, “Que horror!”... Enfim, até utilizamos termos contrários ao seu significado. Não é que apelamos a “Deus” quando supostamente é uma entidade fraterna e tolerante segundo a moralidade cristã? Achamos que haverá ali algum “problema” quando na grande maioria das vezes nem conhecemos a vida desta pessoa, a sua história, os motivos que a levaram a apresentar-se desta forma, que para nós é tão “fora do normal”? Achamos muitas vezes um “horror” algo que esteticamente é subjectivo, pois o conceito de belo depende de pessoa para pessoa e não é generalista.
Temos diversos casos destas situações, desde pessoas que têm tatuagens por todo o corpo, piercings ou até mesmo os proprios travestis. Vou abordar estes dois exemplos, que me deixaram a pensar recentemente.
Pensemos no caso de um homem que passa por nós na rua e que tem tatuagens por todo o corpo. Desde logo, começamos a olhar fixamente para ele e analisar o tipo de desenhos, cada promenor do seu corpo, a seguir, começamos a opinar com a pessoa que estiver ao nosso lado, de como todas aquelas tatuagens são feias ou desnecessárias, que tornam o corpo feio, que até lhe dão um ar rebelde ou mesmo agressivo, que ele deve ser um criminoso e que deve ter um passado obscuro, ou seja, para nós esta pessoa será um marginal. Agora pensemos que esta mesma pessoa noutra situação, não se apresenta à nossa frente com as partes do corpo tatuadas à vista, mas que veste uma bata branca e tem um estétoscopio ao pescoço. É um médico. E pensamos: “ é um doutor”, “sabe muito”, “está aqui para nos salvar a vida”. Quando o vemos no hospital ou no consultório, apresentado como os médicos se apresentam, sentimos um grande respeito por ele e alívio em sermos tratados por alguém com esta imagem.
Quando existem pesssoas que viram este mesmo homem tatuado e são seus doentes, se o considerarem um bom profissional poderão continuar a tê-lo como seu médico, ainda que possam caracterizá-lo, também, pelas suas tatuagens (como se tal influenciasse o desempenho do homem enquanto médico!), mas em vez de troçar e de se afastarem dele, poder-se-ão condescender e fingir que aceitam todas aquelas tatuagens. Logo, será o argumento “tens tatuagens em todo o teu corpo, por isso, já não és bom profissional naquilo que faças” um argumento suficientemente válido? Ou neste caso, “tens tatuagens em todo o teu corpo, por isso, já não és bom médico”, um argumento aceitável para que este profissional já não nos possa salvar a vida?
Agora pensemos no caso de um travesti. Estamos nós, muito bem num local público da cidade, quando de repente, vemos uma pessoa que dá bastante nas vistas, muito alta, uma grande cabeleira loira e vistosa, vestida com camisa e casaco que parecem caros, saia pelo joelho e de sapatos de saltos altos, tal e qual como as mulheres se vestem habitualmente na nossa cultura ocidental, quando a sua profissão assim o aconselha.
Se considerassemos uma mulher, seria uma pessoa aparentemente normal, sem qualquer problema, que podia chamar a atenção de uma ou outra pessoa pela sua beleza, elegância e/ou indumentária. Mas e se esta pessoa, que para nós é bem apresentada, após repararmos melhor, fosse na realidade, um homem, um travesti? Nesse caso a nossa avaliação mudaria. Agora, e se essa “mulher” fosse a presidente de uma conceituada marca estrangeira? Provavelmente, ser-nos-iam apresentadas duas situações completamente diferentes: a primeira era que se fosse mesmo do género feminino ficariamos bastante orgulhosos em ter uma mulher portuguesa a ocupar um cargo de tamanho prestigio internacional e comentaríamos com os nossos amigos, familiares e colegas que vimos aquela mulher que é a Presidente daquela marca que todos nós gostamos. Mas se esta “mulher” que nós vimos fosse na realidade do género masculino, neste caso, um travesti, a situação teria um contorno diferente. Talvez começassemos desde logo a criticar, que uma pessoa “dessas” nem devia ocupar um cargo tão importante, porque “não o merece” – já que nem se define sexualmente - que de certeza que não é tão “boa” a fazer esse trabalho como outros profissionais, questionariamos as suas habilitações para o cargo e que para o ocupar então deveria ter recorrido a algum favor... Enfim, passariamos a já não sentir orgulho da pessoa, nalguns casos existiria choque e revolta para com esta situação e ao revelá-la a outros, passar-se-ia a apontar mil e um defeitos pessoais e profissionais a esta pessoa.
E se os defeitos que apontamos ao travesti, como o de não ser competente nesse trabalho, de não dever ter as habilitações necessárias para o mesmo e de ter recorrido a cunha para ocupar este cargo importante, fossem os “defeitos” que efectivamente uma mulher poderia ter, mas que pelo facto de ser do género feminino, nos orgulharia do cargo? Defenderíamos o pressuposto da igualdade de direitos entre homens e mulheres e até o sistema de quotas!
Mas e se aquela pessoa que é travesti se esforçou, batalhou contra todos os obstáculos que lhe foram postos à frente, foi aquele que realmente mereceu aquele trabalho, será que aí a situação se revertia? Na minha opinião, não. No caso da mulher, a sociedade tenderia a fechar os olhos a esses “tão pequenos e irrelevantes promenores”, como o de não ter habilitações suficientes e de recorrer a cunhas para atingir o cargo que tanto queria, porque afinal é isso que nos acostumámos a ver acontecer; já no caso do travesti se soubessemos o quanto competente terá sido e o quanto se esforçou para obter aquele cargo, para nós, para a nossa sociedade, isso não seria relevante porque sexualmente ele não passaria de alguém que não se define e imita outro género.
Com estes exemplos, acho que a sociedade devia mudar, mas para isso acontecer é necessário que, em primeiro lugar, nós próprios mudemos de mentalidade. Porque se cada um de nós começar a pensar de maneira diferente, se olharmos para os outros enquanto pessoas, se encararmos cada história como uma história diferente, se entendermos que ninguém é igual a ninguém, se considerarmos que não existe uma pessoa “normal” nem uma pessoa “fora do normal” e que isso são apenas rótulos, totalmente subjectivos, pois cada um tem a liberdade e o direito de escolher como quer ser e viver, como vai ser e quais serão as formas de se afirmar enquanto pessoa - quer através de tatuagens, piercings ou mudando de sexo - e que essa será uma forma totalmente digna de o fazer, desde que não cause sofrimento a ninguém, aí quando a mentalidade conservadora de cada um de nós passar a ser mais tolerante, talvez a sociedade se altere e os seus periodos de maior crise social se apaziguem. Porque como diz o ditado popular, “as aparências iludem”, há que conhecer a realidade das aparências e o que são aparências irreais.
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