Agostinho da Silva, Um Fernando Pessoa
MENSAGEM UM
Àqueles
a quem, não querendo mal, também especialmente não amam concedem os deuses uma
vida fácil e benigna, que os faz, a eles e aos restantes, acreditar em
protecção celeste; aos outros, porém, àqueles cuja carreira se vê essencial aos
destinos do mundo, vendem os deuses, e bem caro, todos os dons de que os
cumularam; e, porventura, o preço mais alto que reclamam de sua mercadoria é o
de, a cada momento realmente importante da vida, nada disporem como que de
maneira fatal, deixando que o seu amado possa, em plena liberdade, escolher o
que mais é de seu agrado; e aqui a maior parte se perde: porque à chama que os
tornaria celestes preferem a temperada medianidade que para sempre os prende à
Terra.
Começa
logo a escolha pela Pátria. Para a grande maioria dos homens, se apresenta a
Pátria apenas como um acidente ou um acaso físico: são de onde nascem, e, a
pouco e pouco, a convivência dos pais, de seus conterrâneos, mais tarde a
Escola e o estado, os dois grandes organismos encarregados essencialmente de
não deixar ninguém escapar das malhas do exército social, os vão gradual e
realmente convencendo de que não poderiam ter nascido noutro lugar e de que uma
escolha futura que livremente pudessem fazer representaria sempre e de qualquer
modo uma diminuição ou uma traição. A outros, no entanto, e porque são amados
dos deuses, se apresenta o caso de modo diferente: a vida, mostrando à
superfície, como circunstância, o que é meditado e deliberado propósito de quem
rege a História, os encaminha à escolha que decidirá os seus destinos: o de
resplandecer num véu de glória, que é quase sempre, visto por dentro, um véu de
lágrimas, ou o de ser jogado fora como um vaso de oleiro que mentiu, pela má
qualidade do barro, à diligente regularidade da roda e à inventiva agilidade do
gesto. Quem pode, em raro jogo, escolher o seu País por aí mesmo está
escolhendo a sua vida: uma vida que dele mesmo se vai alimentar.
Para
Fernando Pessoa, cuja existência se iria desenrolar, tanto quanto se poderia
prever, no Portugal de seus tempos, isto é, no ponto mais baixo que poderia
atingir a descendente curva da austera, apagada e vil tristeza, a alternativa
apresentada foi a mais tentadora que se poderia imaginar: a da Inglaterra, e a
de uma Inglaterra apreendida na sua história e na sua cultura. Por uma daquelas
pequenas resoluções que movem depois as grandes molas, poderia Fernando Pessoa
ter passado inteiramente ao domínio inglês e nele se afirmado como um homem de
Império, já que o encontro se cumpria na África, ou como um homem de Universidade,
já que o encontro era igualmente num ambiente à Walter Pater, com imaginários
retratos de Inglaterra elisabeteana mascarando uma outra que apenas procurava
colocar seus capitais e manter pela força os seus mercados. Numa ou noutra
carreira, teria Fernando Pessoa sido célebre: as críticas a seus poemas
ingleses seriam apenas o prenúncio do que outros críticos viriam a escrever; um
outro Conrad, noutro domínio, se incorporaria à literatura inglesa; apenas
isso, porém.
O
que, no entanto, acontecia era que iam mais alto as ambições de Pessoa e
penetrava a sua inteligência mais longe do que a dos estadistas ingleses. Era o
mundo mais nobre, mais humano e mais divino, do que o supunha a Inglaterra e
jamais se resignaria a aceitar como permanente, apesar de todas as suas
excelências sobre os outros, apesar de não ter constituição escrita, apesar de
tender já a uma Comunidade de nações livres, um império que, na base de tudo,
mantinha as duas noções e invenções diabólicas da força e do lucro. No fim de
contas, o melhor que a Inglaterra lançava sobre o universo já Portugal o
fizera, muito antes dela; e Portugal porque não era de nenhuma Igreja
reformada, porque se mantivera fiel a Roma e à fraternidade católica, porque
nunca fora sequaz de uma ciência que tendia apenas a dominar, de uma economia
que tendia apenas a explorar e de uma política que não era outra coisa senão de
origem maquiavélica, deixara aberta, apesar das suas falhas, uma esperança para
o futuro: a de que o seu império do mar fora apenas o primeiro passo, por isso
mesmo ainda físico e político, de uma acção que depois a Europa, incompreensiva
como sempre, lhe viria cortar: a de trazer para o mundo aquele Reino que
milhões de homens quotidianamente imploram em vão.
Vai,
pois, Fernando Pessoa, deliberadamente, confirmar o acaso físico: vai nascer
português porque tem a convicção de que Deus não pode abandonar seu outro povo
eleito e de que, passado o domínio da Europa, quando a técnica tiver esgotado
todas as suas possibilidades, quando a economia protestante se verificar
plenamente anti-humana, quando a centralização estatal se revelar estéril,
Portugal virá de novo construir o seu mundo de paz, por maior que tenha de ser
o seu sacrifício: mundo de uma paz que não surja como a Romana ou a Inglesa, do
exterior para o interior, de um César para os seus súbditos, dos tribunais para
os corpos; paz que se realize antes de tudo nas almas, lei que seja
inteiramente não escrita e, no melhor de si, informulada; Reino de Deus que
surja pela transformação interior do homem.
É
como uma justificação e uma explicação deste seu acto fundamental de vida que
Fernando Pessoa, pacientemente, vai durante quase duas dezenas de anos
escrevendo Mensagem, sem dúvida a
mais importante de suas obras plenamente emparelhando com Fernão Lopes, Os Lusíadas, D. João de Castro e a História do Futuro na compreensão do que
verdadeiramente é Portugal; pela inteligência e entendimento fundamentais que
enformam toda a obra e por ter posto mais claro do que Camões na Ilha dos Amores a concepção de um
verdadeiro Império Português ou Quinto Império, veríamos até Mensagem como de importância superior à
dos Lusíadas: no total, o não é,
porque inutilmente procuramos na obra de Pessoa traços daquela espantosa e
eloquente vitalidade de Camões, daquela ígnea personalidade que em si ardendo
destruía todos os círculos limitadores que ele próprio ou os outros tentavam
traçar à sua volta; a diferença que há entre Camões e Pessoa é a diferença que
há entre um homem e a sua inteligência: mas esta, em Pessoa, mais clara e
penetrantemente brilhava; foi mais compreensiva quanto ao Passado estático e ao
Passado dinâmico, tão incisiva como a de Camões quanto ao Presente e muito mais
aguda na previsão do Futuro.
A
primeira ideia que nos dá Pessoa é a de que há um certo passado de Portugal que
não é de natureza puramente histórica: é apenas uma revelação no passado do que
é em Portugal uma perenidade; o apuramento dessa perenidade constitui o
conteúdo da primeira parte do poema, aquilo a que Pessoa chamou justamente Brasão, mas que não é para ele brasão de
túmulo, ou brasão daqueles palácios em ruínas que foram obsessão de Gomes Leal:
o seu Brasão é a nobreza em cerne, é
a essência do ser fidalgo de Portugal. Quando agir, será no Passado, a segunda
parte do Poema, Mar Português, e, no
Futuro, a terceira parte, O Encoberto.
Brasão terá como lema Bellum sine bello: é a potência sem o
acto, a energia sem a matéria, a História sem o tempo: Deus, vendo Portugal em
Si eterno, escreveria Brasão. Mar Português é o acto que não esgota a
potência, a matéria que não apaga a energia, o tempo que não liquida a
História: por isso é apenas a Possessio
Maris que o Poeta lhe deu por lema: é Portugal podendo apenas uma mínima
parte do que pode; não se entregando todo e, portanto, apenas possuindo; em Mar Português, Portugal Tem, não É. Em O Encoberto, porém,
toda a sua grandeza se revela: e o descerramento desta sua glória é quase a
renovação, agora de homens para homens, do clamor antigo dos anjos, quando o
Céu fez, por uma Terra que deles se desaviera, o sacrifício supremo de si
próprio: Pax in excelsis; paz nas
alturas em que o homem, indo além de si mesmo, se faz Santo; não a paz em que o
homem, rendendo-se, organiza, explora e defende sua própria baixeza.
Em
Brasão, Portugal é o rosto com que a
Europa fita um Ocidente que, ao plenamente ser, justificará todo o passado de
miséria que a humanidade tiver atravessado; a missão de Portugal não poderá ser
outra senão a de resgatar o que a Europa fez e de a salvar a seus próprios
olhos; por isso o seu campo, o dos Castelos, é o que serve de base ao das
Quinas, o das Chagas de Cristo, este o campo próprio de Portugal: é expirando
na cruz, esgotando-se no seu sangue e na sua piedade, que Portugal poderá
salvar o mundo. No dos Castelos, porém, Portugal porá, como seu alicerce, o que
de mais fundamental a Europa poderá ter dado ao mundo: com Ulisses, a ideia de que o mito é mais importante do que a
realidade, de que o poder vir a ser é o substracto do que é, de que as coisas
morrem à medida que são; com Viriato,
a de que a verdadeira força propulsora da vida não é a inteligência, mas a
reminiscência, e de que o ponto criador não é a definição, mas o
pressentimento; com o Conde D. Henrique a
de que a acção, se Deus é o agente, se faz para além das intenções e das
possibilidades do herói, consistindo o heroísmo apenas em não se recusar o que
não se compreende; com D. Tareja,
juntamente com a da contemporaneidade do temporal e do eterno, a de que o dever
perante a obra consiste em a ela se dedicar com a bruta e natural certeza com
que a mãe amamenta a seu filho; com D.
Afonso Henriques, a de que, para se vencerem infiéis, só vale uma
indefinível arma, que, espinosianamente, tenha como um dos aspectos o da espada
e como outro o da bênção, como um, o do corpo, como outro, o do espírito; com D. Dinis, a de que a intuição poética
vale mais do que o plano; com o sétimo castelo, o que junta D. João e D.
Filipa, o que se afirma é que a História, ao ser, toma dois aspectos: o do
homem e o da obra, sendo as modificações de qualquer desses o reflexo das
modificações do outro; e ainda, que o milagre da concepção humana consiste em
que cada filho, sendo de seus pais, não tem ao mesmo tempo nada que ver com
eles: a cada nova geração reafirma o Espírito Santo a liberdade de criar. A
Europa em que Portugal assenta não é, felizmente, a Europa cartesiana.
Se
a força de alicerce de Portugal vem de ter afirmado a sua existência de uma
Europa que duas vezes se perdeu de si própria, primeiro na Idade Média grega,
depois na Idade Média Ocidental, a sua força de salvação virá de,
voluntariamente, ter incluído em seu brasão as chagas de Cristo, não
pintando-as apenas, mas consubstanciando-as em gente sua: primeiro em D.
Duarte, o mártir do dever; depois em D. Fernando, o mártir da grandeza de alma,
superior sempre a seu destino; e em D. Pedro, o mártir da fidelidade a uma
ideia claramente pensada e claramente sentida; e em D. João, o mártir de não
querer senão o todo, ou o seu nada; e, finalmente, em D. Sebastião, o mártir do
sonho de grandeza que está para além das circunstâncias históricas. Coroando os
campos, a santidade activa de Nuno Álvares, a sua pureza guerreira, o halo que
no céu gravam suas acções terrestres; e, numa afirmação final da energia que a
tudo subestá, o Grifo com sua cabeça de águia adivinhando o mundo como um
perfeito globo, ou melhor, obrigando o mundo a ser o globo que pensava; com uma
de suas asas rasgando o firmamento num sulco de vontade, com a outra das asas o
rasgando num sulco de poder.
Sobre
a base teórica de que a vontade de Deus desperta o sonho do homem e de que o
sonho do homem provoca o surgimento da obra, e afastando por aí, para explicar
a História, tudo o que sejam causas espirituais ou materiais limitadas ao
círculo humano, e pondo nitidamente, logo no primeiro poema, que a história que
vai contar, a da Possessio Maris, não
é a História de Portugal, mas apenas o seu interrompido prólogo, Pessoa dá o
que foi o encantamento máximo dos navegadores, o de transformar o abstracto em
concreto; o que foi basilar em sua actividade, a convicção de que só em Deus,
como último porto de repouso; a vontade de um Rei de carácter sacramental que,
faz, ao mais humilde dos homens, poder mais do que todos os medos do mundo; a
glória de ter mostrado que o mar é sempre o mesmo e que a sua posse nada
significa de vital; o sentimento de que o que vale na empresa de buscar é a
busca e não o encontro; o mérito de ter sido o corpo da vontade de Deus, de ter
sido o Tempo da Eternidade a revelar; o impulso que irá conduzir a história
para além dos que o lançaram; a consciência de se ter realizado, no mundo
físico, e sem nisso estar verdadeiramente empenhado, a mais alta façanha de que
os homens se podem orgulhar; o ter ensinado que toda a descoberta se faz apenas
quando se tem a coragem de passar além dos domínios da alegria e da dor; por
fim, em Última Nau e Prece, a certeza de que, embora tenha
vindo a noite e seja vil a alma, Deus ainda reserva para o seu povo Distância a
conquistar.
É
essa Distância como distante, é essa conquista como inconquistável o que, em O Encoberto, se anuncia pelos Símbolos, pelos Avisos, o último dos quais é o do próprio Fernando Pessoa, e se
afirma triunfantemente através do negrume dos Tempos. Portugal, completando a sua obra, dará ao mundo o seu
íntimo Império feito de anseios, de lonjuras, de Reinos ilocalizáveis em tempo
ou espaço, o seu reino de alma humana continuamente sendo e continuamente
ansiosa de mais ser, tendo-se inteiramente desprendido das ilusões de uma
afirmação puramente pessoal e de uma pessoal felicidade; o mar bate nas costas
do Império, mas, se o escutarmos, pára; decerto, porém, um dia, desistindo do
nos opormos ao mundo, não mais o quereremos escutar; então, através de todo o
nevoeiro, pelo próprio nevoeiro, terá surgido a Hora; o Encoberto, em milagre
supremo, se descobrirá.
Mensagem Dois
Sem
se mexer, nem sequer por dentro, como dele dizia Álvaro de Campos, Fernando
Pessoa agudamente se observa a si mesmo e ao grupinho que com ele tinham
formado os três poetas. Era o conjunto de mais penetrante inteligência, de
maior capacidade de ironia, de menor provincianismo que jamais se constituía em
Portugal; no entanto, tendo tão superiormente ultrapassado a vida, podendo, por
exemplo, dizer a um Sá-Carneiro que o não achavam completamente civilizado,
podendo tratar a sociedade portuguesa do tempo com o desembaraço, o desdém e a
agressividade com que a trataram – apenas, de onde a onde, com algumas
ingenuidades, como a de propor Mensagem
a políticos cuja característica essencial era a de não serem nem imperiais, nem
proféticos, nem épicos mas chapadamente pedestres, retrógrados, locais – o
certo era que afinal o meio ambiente acabava por os vencer, com as bebidas, o
fumo e os cafés de Fernando Pessoa, o exílio sem glória de Ricardo Reis, a
morte prematura de Alberto Caeiro, e é fora de dúvida ser a tuberculose uma
doença de ambiente, e o cansaço permanente de um Álvaro de Campos. O que os
abatia e afinal os unia num mesmo denominador era essa falta de uma energia que
todos louvaram e todos punham como o bem mais desejável de todos os bens, mas
que apenas lhe dava para escreverem seus panfletos de várias formas e os
comentarem ou comentarem os dos outros à volta das mesas do Martinho.
O
grito de ter vindo a noite e de ser vil a alma era afinal o grito de todos, mas
nenhum tinha a coragem prática de agir. Era como se o acontecimento histórico
que emasculara a Nação os tivesse emasculado também a eles; era como se a
Europa socrática e renascentista, vingando-se de todo o desprezo cultural e
político a que sempre Portugal a tinha votado; vingando-se daquele soberbo
desdém que Fernando Pessoa melhor que qualquer outro exprimira em Mensagem, o desdém pelo estrangeiro que
apenas achara o que no encontrar português só por destino não fora achado;
vingando-se daquela autonomia religiosa que construiria a Trindade vivida de
Santa Maria, o Menino Jesus e o Espírito Santo, em oposição a uma teologia
pensada que tanto conservara de judeus, gregos e romanos; era como se ela,
entrando na Península pela mão de Carlos V e com o caminho preparado para erros
anteriores, tivesse dado o golpe fundamental para acabar de vez com os homens
que jamais desprendiam suas mãos do leme ou que tendo na mão a pena somente a
manejavam nos repousos da espada ou conservavam debaixo dos buréis os arneses
vestidos. E tão separados tinham para sempre ficado os portugueses de seus
antepassados que, mesmo quando um acaso interno os lançava aos antigos
caminhos, não mais os conheciam: Fernando Pessoa estivera em África e a África
se mascarara de Inglaterra; Álvaro de Campos estivera no Oriente e o seu
Oriente fora Port Said e não Ormuz, fora um conde francês e não um Fernão
Mendes; Alberto Caeiro estivera no Ribatejo e o seu Ribatejo nunca fora o de
Giraldo nem o de Alfarrobeira; e Ricardo Reis, partindo para o Brasil, não
soubera encontrá-lo.
O
poder de esmagar de tal forma o que fora a Nação mais original do Ocidente e a
de mais larga e profunda missão em todo o mundo só poderia ter sido dado à
Europa por um grande acerto ou por uma grande tentação; para Fernando Pessoa a
ideia de grande acerto não poderia existir, poruqe detestava a América do Norte
e a Rússia e não podia deixar de vê-las como o perfeito fruto da mentalidade
europeia; tinha por conseguinte de se voltar para a ideia de uma tentação
diabólica, mais temível do que a de quedas anteriores, e de que a humanidade só
possivelmente se veria redimida por um novo sacrifício, provavelmente pelo
sacrifício de Portugal como nação. Essa tentação não podia ter deixado de ser a
da eficiência, e a da eficiência vista não como serviço prestado aos outros,
mas como uma afirmação da própria superioridade: como da outra vez, o Diabo
pegara o pecador pelo Orgulho. E passava de coincidência interessante a
necessidade lógica que, tendo o palco da nova tentação e da nova queda sido a
Alemanha, fosse exactamente Carlos V quem tivesse vindo emascular a Espanha e
Portugal; mais a este, como inimigo fundamental porque afinal Castela sempre
tivera suas pretensões a Prússia da Península.
O
golpe essencial a favor da eficiência tinha sido o de ver a sociedade como uma
máquina de produção, em que cada qual tem de ocupar o seu lugar e de se
desempenhar de suas tarefas com o máximo de obediência a uma organização
central; para que isso se conseguisse tinham-se apurado as instituições
estatais, eclesiásticas e escolares pondo-as, no máximo que era possível, ao
serviço dos produtores. De todas elas, as que porventura tinham custado maior
mal eram exactamente as escolares, porque a sua missão consistia em fazer durar
o menos possível a criança, de modo a ter, para produzir, um maior número de
adultos: é por isso que é inteiramente errado dizer-se que, na época de sua revolução industrial
tinha a Inglaterra no serviço das minas crianças de cinco anos; o que ela tinha
trabalhando era uma coisa muito mais monstruosa: eram adultos de cinco anos de
idade.
De
então para diante em nada mais se mudou, na grande massa da educação, senão nas
técnicas de fabricar adultos pelo assassínio das crianças; a humanidade de
jeito ocidental pratica em grande escala o infanticídio do espírito, apenas o
punindo quando é físico porque isso lhe rouba definitivamente a matéria-prima
do adulto. Aquelas crianças que várias vezes Fernando Pessoa apontou como a
melhor coisa que há no mundo, aquele Menino eternamente criança e humano que
era Alberto Caeiro o Deus verdadeiro e supremo que faltava no universo, a essas
diariamente as sacrificam nas nossas escolas, diariamente as crucificam,
diariamente as imolam nas aras da Eficiência. O que permitiu à Europa dominar
Portugal, chegando ao extremo de lhe apresentar o que há de mais estrangeiro,
de mais alheio à índole nacional, como inteiramente nacionalista, foi o pecado
de ter levantado como valores supremos de vida humana os do adulto, o saber, o
trabalho e aquela separação de sujeito-objecto que permite a filosofia, a
ciência e a técnica. A Europa se vendeu ao Diabo e o dinheiro que nisso ganhou
lhe serviu para comprar Portugal.
E,
comprando-o, destruiu o último refúgio que ainda poderia haver no mundo para as
qualidades distintivamente humanas, as da imaginação, em vez do saber, do jogo,
em vez do trabalho, da totalidade, em vez da separação; são essas e não as
outras as que têm demonstrado os grandes criadores de ciência, os grandes
artistas, ou os grandes políticos: por isso os perseguimos quando vivos e os
aproveitamos, porque já eficientes, quando seguramente mortos. Não haverá
salvação para o mundo enquanto não entendermos e fizermos penetrar me nossas
consciências este facto basilar, e enquanto as nossas escolas, transformando-se
inteiramente, não forem, em lugar de máquinas de fabricar adultos, viveiros de
conservar crianças; enquanto não forem as crianças que nos levem, não pelo
caminho que uma ciência fáustica previu, mas pelo que houver, dando a mão, ao
mesmo tempo, a nós e às coisas: enquanto não for o Menino Jesus nosso Deus
verdadeiro.
É
evidente, no entanto, que a escola é apenas um dos elementos de um sistema; a
pedagogia está ligada à sociologia, à economia e à teologia racionais por laços
muito mais íntimos do que se pensa; tudo são fabricações de adultos. Pensam
eles, os pobres, que pode jamais haver no mundo alguma forma satisfatória de
governo organizado, de economia organizada ou de discurso do sobrenatural, a
não ser que os pensemos sempre dentro de um mundo de adultos: fora dele, num universo
de qualidades infantis, num Paraíso, e é por isso, porque os adultos aí eram
crianças que não havia crianças como Adão e Eva, e só as houve depois que, para
podermos comer e se vestir, principiaram eles a ser adultos, - num Paraíso,
todo o governo que não for amar será absurdo, toda a economia que não for
colher será absurda, toda a teologia que não for contemplar será absurda.
Poderia
parecer que por este caminho se poderia Fernando Pessoa opor a todo o
crescimento da técnica; mas é técnico Álvaro de Campos nos melhores momentos de
si próprio e, se não exerce a sua profissão, é decerto pelos seus arrebatos
melancólicos, mas também porque se não percebe um engenheiro naval num País que
não mais constrói navios – embora possa, como a Holanda, fabricar paquetes ou
cargueiros: e o grupinho de Pessoa sabe perfeitamente através dele que é
exactamente pela técnica, mas pela técnica tomada como um jogo geral e não como
um meio individual de ganhar dinheiro ou poder, que pode o homem abrir o seu
caminho de regresso ao Paraíso: mas, para tomar a técnica como um jogo, é
preciso que se seja anteriormente criança: a conversão religiosa ao Menino
Jesus deve preceder a revolução social. O contrário seria materialismo, coisa
de padres sem religião, como dizia Alberto Caeiro; o que também se poderia
afirmar da religião que avassalou Portugal a partir do século XVI.
Ligando
os pecados da Europa ao que foi Portugal antes de a noite vir, poder-se-ia
pensar que o D. Sebastião da Mensagem,
o Encoberto, o que há-de voltar na manhã de mais cerrado nevoeiro, quando toda
a esperança parecer perdida, é ao mesmo tempo o Menino que jamais se resignou a
ser adulto no Rei de Alcácer e o Menino que jamais se resignou a ser adulto nos
melhores homens do mundo; a grandeza qual a Sorte a não dá seria, não a
grandeza deste mundo em que logo se pensa, mas a grandeza do Reino que Jesus
afirmava ser o seu e que seria povoado dos pequeninos que a si chamava e que
apontava como modelo a seus discípulos; e à volta de D. Sebastião, iniciando no
mundo o novo Império, cada homem e cada mulher, redimindo-se de ser adultos,
iria oferecer a um Deus também Menino, libertado finalmente de sua Cruz e de
seu distante Céu, o seu ramo infantil de contempladas flores.
É
por esse Império, que nem ele nem os e seus companheiros têm a coragem ou a
força ou a hora de construir, porque numa história movida por Deus tudo vem a
ser o mesmo; é por esse Império, que não tem lugar marcado nos mapas porque
vive no sorriso, no olhar, nos sonhos dos meninos; é por esse Império, que se
tornará consciente ou inconsciente a nós, como se torna consciente ou
inconsciente a uma criança o que, dormindo, a faz sorrir; é por esse Império,
que só poderá surgir quando Portugal, sacrificando-se como Nação, apenas for um
dos elementos de uma comunidade de língua portuguesa; é por esse Império, que
já foi aurora de realidade e que hoje é apenas cavo passo que se escuta em
palácios desertos, que Fernando Pessoa pensa, escreve, concebe génios, sofre
recolhido e ignorado morre. Mas sobre ele reina, como já reinou sobre nós
outros, aquele Menino Imperador que, em oposição ao Imperador germânico, o
Imperador dos adultos, e iniciando seu Império pela abertura das prisões e pela
abundância para os pobres, coroavam, por amor do Futuro, os portugueses do
melhor tempo; e que ainda hoje coroam os homens de Santa Catarina, entre os
quais vivo e escrevo: aqui, também, esperemos, por amor do Futuro.