segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Miguel Esteves Cardoso

"Lembro-me perfeitamente de não ter ido ver os Joy Division ao Electric Circus no Outono de 1977", escrevia, em Novembro de 1980, Miguel Esteves Cardoso (MEC), nas páginas do semanário O Jornal (numa crónica de título "Joy Division, a divisão e a visão da tristeza", mais tarde integrada em Escrítica Pop , livro originalmente publicado em 1982 e que o semanário Blitz reeditou em 2003, aquando da sua edição nº 1000). MEC viveu em Londres entre 1975 e 1979 e em Manchester em 1980 e 81, testemunhando assim em primeira-mão quer as explosões do punk, quer o nascimento da Factory em Manchester, pilar do período pós-punk. A agente de espectáculos Carmo Cruz, mãe das filhas de MEC (as mesmas Sara e Tristana que são alvo de dedicatória em Escrítica Pop e que inspiraram o título de um dos temas do álbum Amigos em Portugal , dos Durutti Column de Vini Reilly), acompanhou o cronista nesse período em Inglaterra e tem lembranças vívidas. "Conhecíamos bem o Tony [Wilson] e o [Alan] Erasmus, que era o sócio dele na Factory. Mais tarde, eles ficaram muitas vezes na nossa casa de São Pedro do Estoril e lembro-me que a mulher do Tony tinha um "affair" com o Vini [Reilly]. Costumava haver grandes confusões por causa disso". Carmo Cruz também se recorda da consternação sentida em Manchester nos dias que se seguiram ao suicídio de Ian Curtis, mas refere que o impacto foi sentido "junto de um número reduzido de pessoas - os Joy Division eram muito "underground"". O tempo pode ter agigantado o estatuto da banda de Unknown Pleasures e Closer , mas em finais dos anos 70 a famosa "cena" de Manchester era circunscrita. MEC reportou precisamente esse tipo de ambiente na já mencionada crónica d'O Jornal: "Lembro-me perfeitamente de não ter ido ver os Joy Division ao Electric Circus no Outono de 1977. Nessa altura chamavam-se Warsaw e nesse dia apoiavam uma banda muito apreciada em Manchester, os Buzzcocks. O concerto (se assim se pode chamar a uma espécie de hangar de aviação cheio de cripto-punks), lembro-me muito bem, passou completamente despercebido, inclusive por mim". A ironia apenas confirma a realidade - mais do que uma revolução generalizada e em larga escala, o punk inicialmente espoletou o espírito criativo e combativo de pequenas células dispersas pelo país.
Longe do "centro do mundo" que Londres parecia ser em 1977, situava-se uma Manchester pobre, desprovida de glamour pop e acinzentada pelas indústrias químicas estabelecidas ao seu redor. "Nessa altura", prossegue a crónica de MEC, "Manchester era um viveiro de bandas-que-queriam-ser e vivia-se uma atmosfera em que eram mais os que tocavam do que os que ouviam. O Electric Circus era apenas onde as bandas-aspirantes, disfarçadas de "público", iam espiar as bandas que tinham conseguido percorrer o espaço entre chão e palco. Quando os bombeiros e a polícia conseguiram fechar o sítio, houve um festival de despedida em que tocaram os espíritos musicais mais atilados de Manchester: os Buzzcocks, Magazine, The Fall, Slaughter & The Dogs e Warsaw". 

Texto de Rui Miguel Abreu, Blitz 

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