sábado, 6 de novembro de 2010

Diário

O diário é um dos géneros da literatura autobiográfica mais comummente cultivados, pois é confidente tanto do homem público como do homem privado, tanto do escritor ilustre como do adolescente fechado no seu quarto ou da mulher a quem, ao longo da história literária, nem sempre esteve aberto o acesso à publicação.
O estatuto do diário é o da confidência: extroversão da vida íntima para um «amigo», o caderno de notas. Como na confidência, a relação entre o eu e o diário define-se pela contradição entre a vontade de falar e a de guardar segredo. O diário funciona de facto, muitas vezes, como interlocutor: quantos diaristas conversam com o seu diário, interpelando-o mesmo! Outras vezes, o diário funciona como sucedâneo dum interlocutor real, à falta dele ou por incapacidade de um relacionamento normal com outrem. No primeiro caso, […] o diário nasce de uma situação de isolamento. Escreve-se diário na prisão, quando se está privado de outro tipo de comunicação. Escreve-se diário a bordo, ou durante uma doença, ou no exílio. No segundo caso, o diário é igualmente o parceiro por excelência do diálogo.
Mas o diário pode não ser apenas um caderno de confidências. Pode voltar-se para o exterior e albergar impressões de viagem, comentários de leituras, reflexões políticas, estéticas, morais, etc. […] Por essência espaço de fundação e reconhecimento do eu, o diário pode tornar-se exercício intelectual e oficina de ideias. Nascendo duma situação unilateral de comunicação, em que o destinador e o destinatário são uma e a mesma pessoa, ele pode transformar essa situação em partilha com os outros. A prática diarística é, assim, o lugar dum duplo movimento, de interiorização e de exteriorização. Com a publicação, o texto é introduzido no sistema de consumo colectivo, perdendo o seu estatuto privado. O diário íntimo deixa de o ser, por vontade do seu autor ou por vontade alheia. Para os mais radicais, a publicação de um diário é uma contradição. […]
Mas, mesmo que se quebre a intimidade, pode ainda manter-se no texto um «efeito de intimidade». O estilo menos elaborado, por intenção ou por negligência, contribui para tal efeito, bem como o uso de iniciais para designar nomes de pessoas ou lugares, um menor grau de discursivismo, as formulações elípticas, etc. […]
A descontinuidade, o fragmentarismo são sinais distintivos do diário, que imediatamente o diferenciam da narrativa autobiográfica. O diário obedece a um modelo de narração intercalada, isto é, de enunciação que alterna com o acontecimento dos factos narrados. A datação das notas é um modo de significar essa construção fragmentada e sempre recomeçada. […]

Clara Rocha, Máscaras de Narciso, Coimbra, Almedina, 1992, pp.28-32

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